23.4.08

democracia - texto de 2004?


Estava eu fuçando meus textos antigos publicados na internet quando dei com esse no blog de um desconhecido. Eu o fiz na ocasião de uma eleição (provavelmente de 2004). Publico o texto na íntegra logo abaixo sem nenhuma alteração ou revisão. Eu não diria o que disse com as mesmas palavras (podem soar arrogância de individualista de direita - algo que execro), mas manteria o ar de desconfiança. Mudei? Não muito.


"Democracia

Mais uma vez as ovelhas puderam escolher o pastor. E eu me pergunto a graça de estar na cerca, quando fora, ao pé do rio, a grama que cresce livre é tão mais doce...Todos os graciosos cidadãos deste cercado agarram-se às falsas promessas, confiantes (tolos) no fim de seus tormentos. Crêem os pobres na revolução? Quando muito, nacos de pão. Pensam que as tosas se darão a intervalos justos (oquêi). Ou que o abate não se fará senão sob determinado intento (pois bem).Mas as eleições são feitas, tempos em tempos, pelo dono das cercanias de modo a dizer-lhes que, por terem escolhido mal seu algoz, suportem o funcionário incapaz até o término de seu contrato, e que se rejubilem com seu destino, pois assim são as coisas e ninguém há de mudá-las.É sabido, porém, que as boas ovelhas, envergonhadas de sua infeliz escolha, não levantam a voz nem a face para opor-se ao cajado que as conduz. Todas acreditam, de coração, que, aonde o pastor decidir conduzi-las, ali estarão em paz, afastadas do terrível lobo que espreita por cada fresta, e, dizem algumas, não tarda a se infiltrar no grupo para satisfazer-se sem sobressaltos.Todos sabem que as ovelhas são animais estúpidos e não saberiam identificar um assassino entre as amigas. Para isso existe o pastor, que é de melhor estirpe e pode facilmente cuidar para que as coitadas, andando por aí por suas próprias idéias, não se percam em mato aberto, acostumadas que estão a arames farpados, vida regrada, fim definido (vitrine e panela). Não somente as ovelhas escolhem seus pastores como também os burros interrompem a jornada para eleger a nova mão que os chicoteia. É sabido que os burros são bichos esforçados, embora às vezes empaquem e para isso é dado por Deus o direito da mão eleita descer sobre eles sua ferina chibata.Uma ração mais farta de feno é o que prometem os candidatos. Contudo, de nada vale o cumprimento de tal promessa ao mais sábio dos animais, pois que as surras e a labuta tomam-lhe o porte e o dom de mastigar, e está definhando a olhos vistos. Contudo, conta com a regalia da desobrigação do voto, posto sua idade avançada, do que seu alto nível de conscientização não lhe permite dispor.Não se trata aqui de alternativas reais para os que se vão conduzir ao laço, mas da simbólica atitude de aceitação para com seu destino. Legitimidade, todos sabem, é a alma do negócio. Dela carece mesmo o mais vil dos cretinos... Que dirá todo um complexo sistema que visa culpar os explorados por sua própria exploração?À mim, ó ilusão juvenil!, nem a mão nem o algoz nem o pastor me domem, ou me impeçam de ir pastar onde quiser".

20.4.08

liberalismos


há quem classifique as posições políticas em liberais e conservadoras. não é muito difícil estabelecer quais são essas últimas (embora esse termo não seja tão preciso quanto parece - falo dele em outra ocasião). mais complicado é determinar o que é um liberal. afinal, se conservadorismo e liberalismo são posturas antitéticas, como pode um conservador notório, como Olavo de Carvalho, aliar-se a assim chamados "liberais" (a "direita bossa-nova") em defesa a dita "economia de mercado" e atacar outros tantos por liberalismos menos palatáveis à sua sensibilidade cristã? como pode um defensor ferrenho das tradições abraçar de tal modo o mecanismo mais eficiente de aniquilamento dessas mesmas tradições? e por que há os que se dizem liberais, mas que clamam a intervenção estatal na economia em nome da própria liberdade?

a única solução para esse impasse é aceitar que há ao menos dois liberalismos:
1. um liberalismo econômico, que preza a "livre concorrência" de bens e serviços;
2. um liberalismo político-cultural, que preza a "livre concorrência" dos modos de vida e de pensamento.

é um equívoco acreditar que não se pode ser liberal apenas em um desses caminhos, mas também não é correto crer que a disponibilidade contínua de múltiplos caminhos existenciais (devidamente formatados para circular no mercado de idéias) possa se sustentar sem o livre-mercado de bens e serviços, com toda a desigualdade que este acarreta. a pluralidade de "tribos urbanas" formando pacotes identitários para consumo é conseqüência das demandas sacralizadas do mercado de bens e serviços. ao contrário do que pensa nosso bom Olavo de Carvalho, o livre-mercado não é a melhor maneira de conservar tradições. ele se fez, se mundializou, de fato, devastando culturas. essa questão chega a ser ponto passivo para muitos. a modernidade, como contínuo processo de destruir para reformar, essa fome incessante pelo sempre-novo, é fruto do capitalismo, e floresce com mais força em locais onde o mercado se move sem intervenções. as tradições são abaladas, quando não destruidas. novas tradições são constantemente inventadas - e já nascem sob o signo da obsolescência programada.

mais coerente era a direita aristocrática, que atacava o liberalismo em todas as suas faces, pois sabia que ele representava a decadência do antigo modelo, o fim dos antigos privilégios (por hereditariedade, principalmente). a direita burguesa, contudo, não conseguiu fugir à esquizofrenia de sua condição instável. são como as criaturas aderidas à roda da fortuna (arcano X). são geralmente nouveaux riches. não podem apelar para o sangue azul ou a decisão de Deus - soam ridículos quando o fazem. ao proletarizarem os antigos servos, ao urbanizarem seu domínio, juntando culturas diversas num mesmo espaço, contribuíram para a ubiqüidade da desconfiança que rege as atuais relações. a ciência e a técnica cresceram muito sob os auspícios de industriais e comerciantes. cresceu também, com isso, a razão instrumental. com ela, a exigência de provas (até a Igreja parece curvar-se à ciência - mas só em aparência, claro).

ao transformar tudo que dava em mercadoria, até a própria identidade - e assim os elos culturais - foi mercantilizada. o livre fluxo de bens não pode acontecer sem o livre fluxo de gente e de idéias. o choque contínuo entre estranhos ajudou a relativizar as crenças para alguns, mas fez outros tantos fecharem-se para o mundo. a modernidade engendrou o cosmopolitismo do mesmo modo que permitiu o surgimento dos fundamentalismos que hoje a assaltam. os fundamentalismos são respostas de tradições ao avanço do liberalismo cultural com seu "tudo é válido", todas as diferenças devem ser defendidas (desde que essas diferenças defendam elas mesmas as diferenças alheias, isto é, desde que só sejam diferentes na superfície, mas liberais na essência), o que quer dizer que nenhuma diferença é significativa o suficiente para dominar as outras, só o próprio liberalismo cultural - que serve de cultura suserana sob a qual as culturas vassalas podem subsistir. a mensagem passada é a de que o destino de cada um está sob seu controle, quedamos ante a suprema decisão da pessoa quanto ao caminho que deve seguir. cada qual escolhe que cultura vai usar hoje.

há fluxos e refluxos, mas em sua base os liberalismos se complementam. o capitalismo e a modernidade são faces da mesma moeda. os feiticeiros não sabem lidar com o demônio que evocaram (diriam-no Marx e Engels tão acertadamente). não dá pra ter capitalismo e aristocracia ao mesmo tempo, como há quem queira. não dá pra democracia ser uma busca pessoal pela liberdade, como quer Olavo de Carvalho, com a hierarquia fluida que o capitalismo demanda. não dá pra manter claro quem está por cima, quem manda. as elites são momentâneas e baseadas em algo tão casual, tão efêmero, quanto a posse de dinheiro, esse recurso fugaz que não vê nome nem vê credo - para o quê nada há de sagrado. a economia de cassino em que vivemos não liga para as idéias babacas tão custosamente defendidas por velhos beatos. múltiplas orientações sexuais, religiosas, políticas, organizações familiares heterodoxas, tudo pode, tudo é válido, desde que venda, desde que dê lucro. o Mercado não é um enviado de Fátima. está muito mais para um acólito de Baco - e eis aí uma qualidade que vejo nele (apesar de tudo).

Moloch quer ouro! Moloch quer óleo! Moloch quer almas!

15.4.08

profissão de fé

não dá pra não ser de esquerda. pelo menos, não dá para eu não ser de esquerda. quem leu meu primeiro texto (se é que alguém lê que escrevo), percebe os valores que me tocam. por isso, apesar de pressões familiares, acadêmicas ou midiáticas, simplesmente não consigo parar de sentir como esquerdista. não consigo parar de desejar mais igualdade. os clamores direitistas (cada vez mais presentes) me exasperam. não quero conservar tradições caducas. ao meu redor, são muitas as coisas que me adoecem, tão distante estão de meus sonhos. está entranhado em mim esse mal-estar, que se transforma em culpa e revolta.

me disseram que sou inteligente, mas imaturo... que pensarei diferente ao ter filhos, ou após ter lido Fukuyama, Slorterdijk ou Ortega y Gasset. a mim não importa. me mataria se percebesse que começava a acreditar ser superior a quem quer que seja. posso não suportar quase ninguém. "as gentes as amo abstratas", como digo no poema Passeio. mas meus rancores são defeitos meus, dos quais tenho consciência. não quero glamurizar falhas de caráter como se fossem atitudes de livre pensador. liberdade não é o direito do "mais forte" (em nosso caso, seria do mais esperto ou, mais comumente, do mais sortudo). liberdade é não-submissão.

a não ser que consideremos a liberdade um privilégio, e não um direito - sendo portanto algo cabível tão só às elites -, precisamos tomá-la como necessariamente coletiva. só se é livre pra valer quando todos os são (não me vem agora a citação de Sartre correspondente; está em "O Existencialismo é um Humanismo"). socialmente falando, só existe liberdade de fato em sociedades não divididas entre Soberanos e Submissos. nas outras, não se tem mais que um arremedo. na nossa, uma transposição moderada da "liberdade do consumidor" para a vida política. são dispostas à escolha de quem tem cacife um rol de opções previamente escolhidas (Debord fala sobre isso em "A Sociedade do Espetáculo").

a liberdade deve ser aspersa no todo da sociedade. ela não deve ser resultado da cisão entre benditos e desgraçados. liberdade e igualdade se coadunam. a fraternidade é o impulso inicial, a perseverança intermediária e a coesão final. não há contradição entre essas palavras-chave. há simbiose. a direita não defende a liberdade sem igualdade, defende o aprofundamento ou ao menos a continuidade da cisão entre Soberanos e Submissos. defende a distribuição desigual de recursos e oportunidades. levada ao extremo (e é tão fácil levá-la ao extremo), a retórica direitista, com sua sanha hierarquizadora, levaria a um "Admirável Mundo Novo" onde cada indivíduo seria geneticamente construído para realizar uma função determinada (Slortedijk), a uma releitura dos Feudos (TFP) ou a novos genocídios nos moldes da Alemanha de Hitler.

democracia não deveria ser o mero sistema de eleição e legitimação de elites políticas rotativas, mas sim a participação de todos os interessados na tomada de decisões cruciais para todos. só há tal democracia em sociedades que rejeitem a cisão entre Soberanos e Submissos. nesse aspecto, uma verdadeira democracia deve ser fruto da concretização dos valores fundamentais da esquerda. obviamente, há divergências dentro da esquerda (nem sei se podemos falar de "esquerda" em vez de "esquerdas") sobre quais seriam esses valores fundamentais e que meios usar para concretizar tal utopia. ainda assim, não posso situar meu pensamento senão dentro desse multifacetado espectro ideológico, no lado onde pulsa meu coração. portanto, sou de esquerda.

já podem até sugerir conexões com traficantes e terroristas, mas antes terão de me arranjar um convite para o Foro de São Paulo.

14.4.08

humanismo e sonho


em nome de um pretenso "humanismo" muitas culturas foram desvastadas. mesmo que as pessoas não fossem destruídas, suas almas o foram. contudo, a reação a essa iconoclastia foi o isolamento das culturas. o reconhecimento da legitimidade do grupo se dá pelo atrelamento da pessoa a uma identidade que lhe é essencialmente legada. se, em nome da liberdade, o "progressismo" deixou as pessoas sem norte, se as entregou ao abandono existencial, ainda pior é a total alienação das escolhas às normas de padrão restritas dos agrupamentos fechados. o grande mal do dito "humanismo" da expansão do ocidente foi justamente o proselitismo de seus missionários. a conversão do outro em europeu (leia-se cristão) era a suposta pretensão dos conquistadores, a promessa de aceitação ocultava a armadilha assimilatória de que fala Bauman ("Modernidade e Ambivalência"). o indivíduo vindo de grupos marginalizados jamais era aceito de todo entre os "modernos", era sempre um pária, um "estranho". não à toa, a desconfiança tomou conta, o ressentimento cresceu e, aos poucos, os resistentes foram se fechando, se esmerando mais e mais em separar-se dos demais. alguns abraçaram o relativismo e chegaram a radicalizá-lo. "tudo é válido". todas as culturas têm uma forma clara, que permanece, que deve ser mantida preservada de contatos nocivos, que podem alterar seu modo de vida. a mudança é vista como algo negativo. ora, como chamamos alguém que teme a mudança? conservador! não há outro termo. parte da esquerda engoliu a retórica multiculturalista e desistiu de pensar sociedades melhores para todos. "em nome de quê vou interferir?" cuidado ao caminharem para não matar formigas. não respirem. não toquem em nada. não existam. caso contrário, estarão condenados a mudar tudo. tudo muda. a questão é "muda para o quê". cabe a nós decidir. e, se interagimos com outros, mudamos esse outros e esses outros nos mudam. nos adaptamos mutuamente. a convivência demanda algum consenso. se todas as pessoas de uma forma ou de outra convivem, elas devem se influenciar mutuamente. não podemos mais partir do princípio de que o europeu (ou quem quer que seja) é o ápice da humanidade e todos devem buscar alcançá-lo. a humanidade se fará (porque a humanidade não passa de um projeto incompleto) pela interação contínua entre as pessoas. não há porque abandonar o humanismo. basta revê-lo. regras mínimas de convivência, direitos mínimos para todos. igualdade, liberdade, fraternidade. igualdade com diversidade, porque todos são diferentes, mas ninguém é superior. a liberdade só se faz de verdade pela equitatividade da potência. a liberdade é coletiva. a fraternidade se faz pela percepção de nossa semelhança fundamental. tudo isso se completa. façamos o humano no convívio com os humanos.